28 de junho de 2011

É como se eu visse um pedaço de mim fora de mim, respirando, tocando e sentindo também o que eu sentia ao ver um pedaço de si, fora de si.
Miniatura de um ser maior que eu, muito além e aquém e além de novo.
Esfera de raio de sol e luar claro, beija-flor do nordeste que anuncia chegada da chuva, sertaneja de meu maior querer, cachoeira e poços de água transparente e esverdeada em dia ensolarado, colibri, andorinha do cerrado,

meu bem melhor de maior querer.

os hormônios que exalam de nossos corpos são como notas, fragrâncias raras que as narinas inspiram docemente.

De lá, de cá e em todos cantos de pés descalços

Éramos eu, Doralice e minha irmã. Passávamos o dia todo contando histórias e elas eram tão verdadeiras que re-vivíamos a situação, nosso corpo encenava os ocorridos com seus personagens e tinha espaço pra tudo, de Saci-Pererê, mãe d’água, rinoceronte, curupira, garfo no meio de redemoinho, árvore que fala, bicho que conversa; sagas, verdadeiras sagas homéricas que eram até cantadas em cima dos troncos secos e caídos no meio do pasto.

E era das flores de algumas árvores, que chamávamos de ipês, que dava uma florzinha branca pintadinha de marrom no formato de uma concha, leve, de um perfume adocicado, de encher o peito até não se ver mais caminho de onde ela estava, que fazíamos perfume. Primeiro colhia as flores, depois fervia em água quente no fogão de lenha, por fim deixava a vasilha dois dias tampada, acrescentava um pouco de álcool, açúcar e mais um ingrediente surpresa, que não posso contar qual era, pois é confidencial, jurado no nosso pacto de sangue na roda d’água, tendo os peixinhos como nossas testemunhas, o difícil era ao pescar, conversar com todos eles antes pra saber se não estávamos pegando uma testemunha, e, ao final do processo todo, envasilhava.

Bem, voltando ao assunto das histórias contadas por nós o dia inteiro, além delas todas e a de fabricar fragrâncias, nós só deixávamos de contar histórias individuais, e valiam também as que aconteciam com nossos pais, nas suas aventuras no meio do mato, pescando, buscando gado nas aguadas, os homens do saco, a mulher vestida de noiva, o cachorro meio homem (...) pausa.

Eram muitas histórias pra botar medo na gente. Uma vez um dos nossos tios , e avô de Doralice junto ao Liilson, subiram em cima de uma árvore e enquanto nós três passávamos por entre as mangueiras que marcavam o limite do enorme quintal, voltando da pescaria, eles começaram a jogar limão e como não víamos ninguém, lógico, pensamos que havia um fantasma, pra outra era o tipo de um gorila e a outra já pensava que podia ser um alienígena, bem, eles riram muito enquanto contávamos desesperadas pra nossas avós e mães o acontecido.

Ficamos épocas lembrando-nos do ocorrido e veio a saudade do fogão de lenha da avó, o café colhido ali, secado, torrado, moído e fervido. Adorava café, aliás, nós três adorávamos café. Eram muito bonitas aquelas xícaras floridas da nossa avó. Miniaturinhas coloridas de alumínio. O mise-en-scéne era perfeito. Sentávamos no banco de madeira, cruzávamos as pernas e tomávamos o nosso café ouvindo as histórias do nosso avô enquanto esperava as batatas doces assarem na brasa do fogão de lenha parecidos com o do João de Barro. Deveriam fazer delas por aqui, aliás, não sei bem, será? Não teria graça sem serem acompanhadas da garrafa de café do nosso avô, aliás, a sua mini garrafa; esses dias mesmo eu falei dela ao meu marido. Ela era xadrez com flores coloridas nos tons de vermelha terra, marrom, ou seriam marrons, não sei, é fato ou é certo. Não vou resolver esta questão hermenêutica.

Voltando ao que fazíamos em coletivo, além de contar histórias que aconteciam individualmente com cada uma, vivenciávamos o mesmo mundo de história quando entrávamos nas valas feitas pelas enxurradas e erosão, grotas, eles chamavam de grotas. Pois bem, elas eram nosso universo a parte, cada cantinho tinha uma história das três, cada caminho de formiga seguido, cada buraco de tatu, rastros de cobras, pegadas de passarinhos, onças, lobos, gato do mato, juriti, andorinha, rinoceronte, cachorro Fiel e todos os do Liilson pai de Doralice; nosso primo primeiro, Doralice na verdade era prima segunda, era ela e o Liilsinho, esse era literalmente o seu nome. Sem dúvidas. Sem dúvidas? Sem duvidas. Sem duvidas? Acho que tem cem dúvidas.

A história acabou que ficou grande. E teria mais um monte de coisas pra contar; todas as vezes que brincávamos em baixo da cidreira com seus espinhos; certa vez um entrou na minha cabeça. __Há sim, agora está explicado! __Não gostei do comentário maldoso do meu eu lírico, ou seria de mim mesma, ou da razão, ou da imaginação. Chega! Sem gritar a letra “a” alongada, por favor, também pensei que ouviria o grito, mas achei melhor não.

Estou cansada. Foram muitas emoções por hoje e infelizmente lembrei-me de Roberto, sim o cafona e figurinha carimbada do calendário cristão. Ano é dividido em férias, carnaval, dia do índio, mães, São João, mini férias, dia dos pais, a primavera, o dia das crianças e nossa senhora da aparecida, finados e o especial de Roberto Carlos e acabou o ano!

E acabou por hoje essa história que logo o galo canta na aurora!


(conto retirado da obra Joana, Ana que anda)